quarta-feira, 14 de outubro de 2009

RELIGIÃO E PODER

RELIGIÃO E PODER

Para começo de conversa, não exis¬te religião sem que alguém esteja de alguma forma exercendo um poder religioso. Na maioria das vezes, esse alguém é do sexo masculino. Não existe religião sem que haja pelo menos um profissional religioso liderando um grupo de pessoas, uma comunidade, uma Igreja. Ora, lide¬rar, organizar, coordenar, di¬rigir são for¬mas de coman¬dar, de exercer poder de man¬do. E poder, se¬gundo a Socio¬logia, significa impor a própria vontade sobre a conduta alheia numa determinada relação social.
Sendo o poder uma vontade se impondo sobre a vontade dos outros, uma; influência que se exerce sobre os outros de cima para, baixo, ele é, por definição sociológica, uma relação so¬cial de desigualdade. Um vínculo entre individuas ocupando posição desigual de superio¬ridade e subordinação. Em poucas pa¬lavras: relação desigual entre desiguais.
Para a Sociologia, não faz sentido falar em religião ele um indivíduo isolado, des¬ligado, porquanto a religião é sempre vivida em grupo. A ação religiosa, no sen¬tido pleno do termo, é geralmente refe¬rida a uma comunidade, Uma ação que, mesmo sendo individual, envolve o indi¬víduo numa comunidade de fé, seja ela um grupo comunitário já formado ou em vias de formação. E, segundo a Socio¬logia, não há agrupamento permanente sem que haja um mínimo de organização, e não há organização sem um mínimo de governo, Por isso, é sociologicamente impensável a participação numa comu¬nidade religiosa sem que haja dirigentes(s) e dirigidos, noutras palavras, um mínimo de hierarquia.

LEGITIMIDADE DO PODER

Nos grupos religiosos, isso significa que haverá sempre algumas pessoas ritualmente distinguidas - isto é, consagradas - com o poder sagrado de mandar nos outros. De impor normas e ditar regras para a conduta alheia. De dizer o que é certo e o que é errado, o que é bom e o que é mau, o que é obrigatório e o que é apenas conveniente. De regulamentar, com mandamentos, preceitos e conselhos, as práticas rituais e as atitudes e ações morais elos adeptos.
Se esse poder encontra pessoas dispos¬tas a obedecer, então estamos diante ele uma autoridade legítima. Aqui convém lembrar que a Sociologia identifica "autoridade" com "legitimidade", isto é, sempre que se usa o conceito de "autoridade" na Sociologia, estamos nos re¬ferindo ao exercício legítimo do poder. Só é legítimo, ou seja, só é autoridade o poder que não precisa apelar para o uso da força para se impor. Ter autoridade é ter legitimidade, e isso significa que aquela pessoa ou ordem tem grandes possibilidades de ser obedecida volun¬tariamente.
Uma característica de toda religião é re¬unir pessoas, e pessoas interessadas em dar ouvidos a alguém que foi consagrado para orientar a conduta de vida dos outros enquanto representante de Deus, ou dos deuses. São pessoas dispostas a obedecer a quem está (ou se diz) investido de poder religioso.
As autoridades religiosas - sacerdote ou clérigo, profeta ou mensageiro, fei¬ticeiro ou bruxo, pajé ou xamã, mestre ou guru, pastor ou pregador, bispo e bispa, monge e monja, padre e madre, babalorixá e mãe-de-santo - mandam em nome de "seres superiores" (deuses, deusas ou espíritos, dependendo do tipo de religião). Enquanto outros, que são a maioria, obedecem de bom grado, ou seja, seguem as regras do grupo sem serem obrigados a isso pela força física ou pela ameaça das armas. É essa resposta de obediência voluntária às ordens divinas e preceitos sagrados que confere legi¬timidade à relação de domi¬nação religiosa.
Quando as pessoas se re¬cusam a obedecer, é porque as autori¬dades religiosas estão perdendo sua le¬gitimidade. A conclusão então é a de que sempre podemos saber quando existe, numa dada religião, o sentimento de autoridade, ou seja, de legitimidade do poder: quando as pessoas obedecem de bom grado a seus superiores religiosos. Se tiverem que ser forçadas, coa¬gidas, é porque deixaram de considerar legítimos os que governam aquela Igreja, seita, comunidade. A medida da legitimidade, portanto, é sempre a obediência espontânea e voluntária.
Atenção: o fato de al¬gumas lideranças religio¬sas se conceberem ou se apresentarem como "servidores" dos seus fiéis não retira nada, sociologicamente falando, do caráter de dominação ine¬rente à relação que elas mantêm com seus subordinados. Mesmo se dizendo "servidores” sabem que vão ser obedecidas, porque acreditam que no interior daquela comunidade de crentes elas têm o "direito divino" de ser obedecidas pelos que aceitaram sua pregação. Ao passo que estes últimos, independentemente de como são chamados (leigos, fiéis, adeptos, clientes, discípulos, acólitos, companheiros ou colaboradores), acreditam de sua parte que têm o "dever religioso" de obedecer. Um dever que, se bem internalizado, se expressa de dentro para fora como "vontade de obedecer". Por isso se diz que aderir a uma religião é sempre um gesto de submissão.

PODER RELIGIOSO E POLÍTICO

Houve um tempo, e não muito anti¬gamente, em que o poder religioso se confundia com o poder político, do mesmo modo que a comunidade reli¬giosa se confundia com a comunidade política. Era uma coisa só, total. Foi assim, por exemplo, quando Moisés co¬mandou o povo eleito formado pelas 12 tribos de Israel, e quando Maomé fundou a comunidade islâmica, que era ao mesmo tempo um Estado e uma comunidade de fé... Naqueles tempos, um povo inteiro era obrigado a seguir uma única verdade religiosa: a religião do fundador, do líder, do rei, do soberano, que se tornava a religião "ofi¬cial" do Estado.
Essa confusão de poder sagrado e poder político, na qual a imutável lei di¬vina se torna a lei de um Estado, em que, digamos noutras palavras, o "poder le¬gislativo" acaba reproduzindo tal e qual o que um determinado Deus "legislou" ele uma vez por todas, chama-se teocracia.
Nos tempos modernos, porém, essas duas esferas de exercício do poder se se¬pararam. Hoje as leis dos Estados demo¬cráticos são feitas por homens e mu¬lheres eleitos para tal, e por isso podem ser mudadas, revisadas pela vontade do povo, o que não iria ocorrer se fossem leis "divinas". A história da civilização ocidental se desenvolveu no sentido de concretizar, cada vez mais decididamente, o ideal de separação entre Igreja e Estado, modelo de convivência que Jesus Cristo havia profetizado em seu tempo e que, sem meias palavras, traz embutida uma crítica contundente de toda teocracia: "A César o que é de César, a Deus o que é de Deus".

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