quarta-feira, 14 de outubro de 2009

RELIGIÃO E LIBERDADE

RELIGIÃO E LIBERDADE

Nas sociedades modernas, a religião sempre foi vista como inimiga da liberdade individual. Não é para menos já que a própria definição de religião comporta um sistema de crenças que possui um determinado código de regras morais, o que implica em leis, proibições e dogmas que geram, por sua vez, punições, repressão e sentimento de culpa. Paradoxalmente a esta compreensão do fenômeno religioso, vemos que os fundadores de grandes religiões, tais como Moisés (judaísmo), Buda (budismo), Jesus Cristo (cristianismo), Maomé (islamismo), aparecem como pessoas buscam, através se seus movimentos religiosos, libertar as religiões de todo um amontoado de regras e rituais que as desviam daquilo a que se propunham, tornando-se ferramentas de poder e formas ele opressão.
Todos eles trazem uma mensagem de salvação de tudo àquilo que impede o ser humano de viver plenamente a li¬berdade, como o apego à viela material, por exemplo. A conseqüência disso é que, muitas vezes, os grandes líderes reformadores foram perseguidos pelas religiões vigentes e, pior, as religiões por eles fundadas não conseguiram ser muito diferentes dos modelos que com¬batiam, Será que não há realmente for¬ma de vi ver a religião senão como privação da liberdade?

SISTEMATIZAÇÃO DA RELIGIÃO

As "religiões da salvação", em geral, como as já citadas, prometem aos seus fiéis a libertação do sofrimento e sur¬gem a partir de um grande profeta ou salvador que se enfrenta com o mágico ou o sacerdote das religiões estabele¬cidas. Esse profeta não busca se legiti¬mar nas tradições anteriores, mas prin¬cipalmente em seu carisma pessoal e santidade.
Com a morte do fundador, cabe aos discípulos a missão de difundir os ensi¬namentos do mestre. A religião se ex¬pande e começam a surgir diferentes correntes dentro da mesma. Torna-se necessário organizar seus princípios, definir suas verdades, sistematizá-las, ao mesmo tempo em que é necessário padronizar as formas de rito, as orações, os caminhos da iniciação etc. Assim, o que era um movimento transforma-se pouco a pouco em uma estrutura, com sua hierarquia, conjunto de verdades reveladas e, consequentemente, proibi¬ções e heresias (grupos milionários que têm uma opinião diferente da dominan¬te) a serem combatidas. Na religião, co¬mo em outras instituições sociais, acon¬tece algo muito estranho: com o intuito de realizar um objetivo, buscam-se cami¬nhos que negam, na prática, a realização do mesmo.

LIBERDADE E OBEDIÊNCIA

O ideal da vida religiosa é a libertação total do ser humano. Na tradição cristã esse ideal se realiza no reino de Deus, em que a árvore da vida não tem mais seu acesso proibido, como no paraíso terres¬tre, mas estão ao alcance eles todos os sal¬vos. E qual o caminho para a salvação que oferecem as religiões Cristãs? Em geral um conjunto de regras e práticas, às quais o fiel deve se submeter sem questionar nem violar. Não lhe é dado o direito de discutir quais regras devem ser formu¬ladas e em que casos podem ser quebra¬das, quem deve ser responsável por con¬duzir a vida religiosa da comunidade ou se os ritos podem sofrer variações con¬forme a cultura local. Tudo já está defi¬nido. Pede-se do fiel obediência e doci¬lidade. Qualquer liberdade é vista com desconfiada suspeita pelos hierarcas e te¬mida como ameaça. Parece que no caso ela religião, a servidão é o caminho para liberdade, o que seria um completo con¬tra-senso.
Por outro lado, entretanto, se a religião fosse só servidão, ficaria difícil explicar os próprios movimentos de renovação espiritual que deram origem a muitas delas. Pois estes não surgem fora elo contexto religioso, mas do seu interior. Temos de reconhecer, por¬tanto, que dentro do fenômeno religioso existe um fator dinâ¬mico, que leva as religiões a se re¬pensarem, seja tornando-se mais fundamentalistas ou aber¬tas às mudanças. Esse elemento dinamizado é a fé.

O DINAMISMO REVOLUCIONÁRIO DA FÉ

A fé é algo essencial¬mente dinâmico. Não se pode estar "firme" na fé, pois ela implica aposta, risco, aventura, liberdade. É in¬teressante notar na Oração de São Fran¬cisco que depois de uma série de oposi¬ções ele diz: "Onde houver dúvida que eu leve a fé". A oposição aqui seria "onde houver dúvida que eu leve a certeza". A certeza mata a dúvida, a fé não. Quem está "certo" de sua salvação é porque já perdeu a fé. Ele não precisa mais da crença. Com a fé não é assim. A dúvida permanece, angustia e, me confrontan¬do com ela, a minha fé vai se tornando mais madura e suscitando novas dúvi¬das numa caminhada de conversão con¬tínua. E, se a dúvida é uma constante que acompanha a fé, como não questio¬nar a própria crença e os certos elemen¬tos tidos como "verdade" pelas autorida¬des religiosas de até então?
Daí que os grandes mestres espirituais e místicos sempre causaram problemas para suas religiões e para si próprios. Muitos dos que foram venerados como santos após a morte foram dura¬mente perseguidos pelas auto¬ridades religiosas em vida. Por¬tanto poderíamos dizer que a fé é algo que ajuda a desor¬ganizar a religião, a impedir que a crença se transforme em ritos formais, protocola¬res e vazios. Quando as pes¬soas se afastam da religião, costuma-se alegar que existe uma crise de fé, talvez a falta de fé não esteja nas pessoas, mas sim na própria religião que perdeu o "fogo de seu primeiro amor", como diz o autor do Apocalipse.
Grandes pensadores sugeriram que se abolisse a religião como forma de libertar as pes¬soas da alienação, da repressão sexual ou pa¬ra poder viver uma verdadeira espiritualidade. Mas as religiões estão to¬das aí e isso não só porque correspondem a formas de dominação e de poder, mas por responderem a uma limitação do pró¬prio ser humano. Não dá para viver em plena liberdade e, precisamos sempre estabelecer regras, padrões de compor¬tamento, para tor¬nar a convivência possível. Sou livre, por exemplo, para [alar a língua que eu quiser, mas se este texto estivesse escri¬to em javanês, você. o estaria lendo agora?

A TENTAÇÃO DO FUNDAMENTALISMO

Como já foi dito anteriormente, mui¬tas religiões surgem. Sob o carisma de um fundador, mas quan¬do o movimento se expande, não dá pa¬ra viver só do caris¬ma dele, é preciso ter alguns acordos comuns, senão a própria religião po¬de sofrer distorções ele indivíduos inte¬resseiros que pre¬tendem manipular os outros. Assim, as normas surgem para proteger o grupo e não com o propósito de reprimi-lo. O problema é que, em alguns casos, pretende-se normatizar tudo, e aí os es¬paços de liberdade ficam realmente cercados. Portanto, a questão é: o que podemos fazer para que a institucionalização da vida religiosa não ultrapasse o mínimo desejável?
Não há uma resposta única a esta questão, já que as religiões são loca¬lizadas histórica e socialmente. Um caminho talvez fosse evitar qualquer ab¬solutização da religião enquanto insti¬tuição. A instituição religiosa, ou a igre¬ja, é um meio ele manifestar a crença e ajudar a organizar a vida religiosa ele uma determinada comunidade de fiéis. Ela não encerra a totalida¬de da religiosida¬de, muito menos da fé. Portanto, toda vez que uma instituição reli¬giosa se diz por¬tadora da verda¬de; ou que fora dela não existe salvação; ou que todos os que professam outras religiões são infiéis, ela está so¬frendo da tentação do absolutismo, ou melhor, do fundamentalismo, como in¬felizmente temos constatado em vários conflitos religiosos pelo mundo afora. O fundamentalismo é um sinal ele que a religião está se desviando do seu propó¬sito e está servindo muito mais à domi¬nação do que à vivência da liberdade.
Outro caminho é mergulhar nas fontes da fé. As grandes religiões trazem uma mensagem ética de libertação do ser hu¬mano. Com o tempo, alguns dos princípios éticos dos fundamentos da religião são abandonados, distorcidos ou mani¬pulados, sendo necessário lembrá-los ou recuperá-los, como o fizeram no decor¬rer ela História, os santos e os profetas. Essa volta às origens é sempre o melhor critério para avaliar até que ponto as re¬gras e as normas da religião estão servin¬do para organizar a vida religiosa ou es¬tão se tornando verdadeiros empecilhos ao seu exercício.
É natural que as autoridades religiosas vejam com desconfiança esses questio¬namentos e procurem reprimi-los. É na¬tural também que muitos religiosos, tão acostumados a cumprirem regras como meio de se obter a salvação, te¬mam qualquer suspeita sobre as práticas religiosas vigentes. Insegu¬ros que são não suportariam vi¬ver a liberdade da fé, por isso escolhem o caminho mais cômodo de não ter que pensar por si mesmos, con¬formando-se a fórmulas prontas. Mas as criticas são importantes para aprimora¬mento das instituições, uma religião que se encerra em dogmas acaba por perder sua vocação original. Por isso, o compro¬misso principal dos fiéis deve ser antes com a fé do que com a religião, para que a comunidade religiosa seja também uma expressão da liberdade humana. Um dom tão precioso que até o próprio Deus res¬peita, não impondo nem a crença nem a religião ao ser humano, mas deixando-o livre para escolher o seu caminho.

RELIGIÃO E PODER

RELIGIÃO E PODER

Para começo de conversa, não exis¬te religião sem que alguém esteja de alguma forma exercendo um poder religioso. Na maioria das vezes, esse alguém é do sexo masculino. Não existe religião sem que haja pelo menos um profissional religioso liderando um grupo de pessoas, uma comunidade, uma Igreja. Ora, lide¬rar, organizar, coordenar, di¬rigir são for¬mas de coman¬dar, de exercer poder de man¬do. E poder, se¬gundo a Socio¬logia, significa impor a própria vontade sobre a conduta alheia numa determinada relação social.
Sendo o poder uma vontade se impondo sobre a vontade dos outros, uma; influência que se exerce sobre os outros de cima para, baixo, ele é, por definição sociológica, uma relação so¬cial de desigualdade. Um vínculo entre individuas ocupando posição desigual de superio¬ridade e subordinação. Em poucas pa¬lavras: relação desigual entre desiguais.
Para a Sociologia, não faz sentido falar em religião ele um indivíduo isolado, des¬ligado, porquanto a religião é sempre vivida em grupo. A ação religiosa, no sen¬tido pleno do termo, é geralmente refe¬rida a uma comunidade, Uma ação que, mesmo sendo individual, envolve o indi¬víduo numa comunidade de fé, seja ela um grupo comunitário já formado ou em vias de formação. E, segundo a Socio¬logia, não há agrupamento permanente sem que haja um mínimo de organização, e não há organização sem um mínimo de governo, Por isso, é sociologicamente impensável a participação numa comu¬nidade religiosa sem que haja dirigentes(s) e dirigidos, noutras palavras, um mínimo de hierarquia.

LEGITIMIDADE DO PODER

Nos grupos religiosos, isso significa que haverá sempre algumas pessoas ritualmente distinguidas - isto é, consagradas - com o poder sagrado de mandar nos outros. De impor normas e ditar regras para a conduta alheia. De dizer o que é certo e o que é errado, o que é bom e o que é mau, o que é obrigatório e o que é apenas conveniente. De regulamentar, com mandamentos, preceitos e conselhos, as práticas rituais e as atitudes e ações morais elos adeptos.
Se esse poder encontra pessoas dispos¬tas a obedecer, então estamos diante ele uma autoridade legítima. Aqui convém lembrar que a Sociologia identifica "autoridade" com "legitimidade", isto é, sempre que se usa o conceito de "autoridade" na Sociologia, estamos nos re¬ferindo ao exercício legítimo do poder. Só é legítimo, ou seja, só é autoridade o poder que não precisa apelar para o uso da força para se impor. Ter autoridade é ter legitimidade, e isso significa que aquela pessoa ou ordem tem grandes possibilidades de ser obedecida volun¬tariamente.
Uma característica de toda religião é re¬unir pessoas, e pessoas interessadas em dar ouvidos a alguém que foi consagrado para orientar a conduta de vida dos outros enquanto representante de Deus, ou dos deuses. São pessoas dispostas a obedecer a quem está (ou se diz) investido de poder religioso.
As autoridades religiosas - sacerdote ou clérigo, profeta ou mensageiro, fei¬ticeiro ou bruxo, pajé ou xamã, mestre ou guru, pastor ou pregador, bispo e bispa, monge e monja, padre e madre, babalorixá e mãe-de-santo - mandam em nome de "seres superiores" (deuses, deusas ou espíritos, dependendo do tipo de religião). Enquanto outros, que são a maioria, obedecem de bom grado, ou seja, seguem as regras do grupo sem serem obrigados a isso pela força física ou pela ameaça das armas. É essa resposta de obediência voluntária às ordens divinas e preceitos sagrados que confere legi¬timidade à relação de domi¬nação religiosa.
Quando as pessoas se re¬cusam a obedecer, é porque as autori¬dades religiosas estão perdendo sua le¬gitimidade. A conclusão então é a de que sempre podemos saber quando existe, numa dada religião, o sentimento de autoridade, ou seja, de legitimidade do poder: quando as pessoas obedecem de bom grado a seus superiores religiosos. Se tiverem que ser forçadas, coa¬gidas, é porque deixaram de considerar legítimos os que governam aquela Igreja, seita, comunidade. A medida da legitimidade, portanto, é sempre a obediência espontânea e voluntária.
Atenção: o fato de al¬gumas lideranças religio¬sas se conceberem ou se apresentarem como "servidores" dos seus fiéis não retira nada, sociologicamente falando, do caráter de dominação ine¬rente à relação que elas mantêm com seus subordinados. Mesmo se dizendo "servidores” sabem que vão ser obedecidas, porque acreditam que no interior daquela comunidade de crentes elas têm o "direito divino" de ser obedecidas pelos que aceitaram sua pregação. Ao passo que estes últimos, independentemente de como são chamados (leigos, fiéis, adeptos, clientes, discípulos, acólitos, companheiros ou colaboradores), acreditam de sua parte que têm o "dever religioso" de obedecer. Um dever que, se bem internalizado, se expressa de dentro para fora como "vontade de obedecer". Por isso se diz que aderir a uma religião é sempre um gesto de submissão.

PODER RELIGIOSO E POLÍTICO

Houve um tempo, e não muito anti¬gamente, em que o poder religioso se confundia com o poder político, do mesmo modo que a comunidade reli¬giosa se confundia com a comunidade política. Era uma coisa só, total. Foi assim, por exemplo, quando Moisés co¬mandou o povo eleito formado pelas 12 tribos de Israel, e quando Maomé fundou a comunidade islâmica, que era ao mesmo tempo um Estado e uma comunidade de fé... Naqueles tempos, um povo inteiro era obrigado a seguir uma única verdade religiosa: a religião do fundador, do líder, do rei, do soberano, que se tornava a religião "ofi¬cial" do Estado.
Essa confusão de poder sagrado e poder político, na qual a imutável lei di¬vina se torna a lei de um Estado, em que, digamos noutras palavras, o "poder le¬gislativo" acaba reproduzindo tal e qual o que um determinado Deus "legislou" ele uma vez por todas, chama-se teocracia.
Nos tempos modernos, porém, essas duas esferas de exercício do poder se se¬pararam. Hoje as leis dos Estados demo¬cráticos são feitas por homens e mu¬lheres eleitos para tal, e por isso podem ser mudadas, revisadas pela vontade do povo, o que não iria ocorrer se fossem leis "divinas". A história da civilização ocidental se desenvolveu no sentido de concretizar, cada vez mais decididamente, o ideal de separação entre Igreja e Estado, modelo de convivência que Jesus Cristo havia profetizado em seu tempo e que, sem meias palavras, traz embutida uma crítica contundente de toda teocracia: "A César o que é de César, a Deus o que é de Deus".